Representações do crescimento empresarial e condições de trabalho sob a ótica de trabalhadores industriais

Representations of corporate growth and work conditions from the perspective of industrial workers

Luiz Alex Silva Saraiva, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5307-9750; Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte – MG, Brasil. E-  mail: saraiva@face.ufmg.br
Alex Fernandes Magalhães, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0845-4061 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte – MG, Brasil. E-mail: alexfm@face.ufmg.br


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Resumo

O crescimento empresarial tem sido objeto de atenção uma vez que ampliar os negócios parece evidenciar o sucesso das práticas organizacionais. Todavia, este fenômeno precisa ser examinado considerando que, numa perspectiva crítica, crescer precisa considerar os diversos agentes e influências a ele associado. Neste artigo, o objetivo é analisar as representações sociais do crescimento empresarial sob a ótica dos trabalhadores, o que foi feito mediante uma pesquisa qualitativa baseada nas trajetórias profissionais de trabalhadores industriais da região metropolitana de Belo Horizonte, tratadas por meio de análise do discurso. Os principais resultados sugerem que os trabalhadores percebem as alterações no contexto e suas consequências para as empresas, o que resultou na decisão de crescimento empresarial. Todavia, os discursos enunciados pelos trabalhadores são ambíguos, variando da sua adesão à ideia de que nada resta além de se adaptar às mudanças, ao seu combate aos efeitos sociais do crescimento no cotidiano laboral.

Palavras-chave: Crescimento empresarial. Representações sociais. Trabalhadores industriais.

 

Abstract

Corporate growth has been the object of attention since expanding business seems to evidence the success of organizational practices. However, this phenomenon needs to be examined considering that, from a critical perspective, growth needs to consider the various agents and influences associated with it. In this paper, our goal is to analyze the social representations of corporate growth from the perspective of workers, which was done through a qualitative research based on the professional trajectories of industrial workers in the metropolitan region of Belo Horizonte, treated through discourse analysis. Main results suggest that the workers perceive changes in the context and their consequences for the companies, resulting in the decision for corporate growth. However, the workers’ discourses are ambiguous, ranging from their adherence to the idea that there is nothing left but to adapt to changes, to their combat against social effects of growth on daily working life.

Keywords: Corporate growth. Social representations. Industrial workers.

 

1. Introdução

Neste artigo o objetivo é analisar as representações sociais do crescimento empresarial e sua relação com as condições de trabalho sob a ótica dos trabalhadores. Desde a primeira geração dos contingencialistas, o crescimento das organizações empresariais tem sido objeto de atenção, uma vez que a ampliação dos negócios parece ser uma inequívoca evidência do sucesso das práticas organizacionais (STOKNES; ROCKSTRÖM, 2018). O crescimento empresarial é um conceito tido como “resolvido” (SEIFERT; VIZEU, 2015), desde que as ações sucedam a prescrições adequadas – é esperado o sucesso de uma organização que planeja adequadamente suas atividades, organiza seus recursos para o alcance de resultados, dirija os profissionais para o atingimento de metas, e monitora todas as etapas anteriores – tal como apregoam os manuais de administração. 

Todavia, há muitos não ditos nessa perspectiva. Ao naturalizar a ideia de progresso, os discursos acerca do crescimento empresarial silenciam a respeito de questões sociais e políticas, assim como aspectos relacionados às condições e organização do trabalho, supondo como certa a anuência dos trabalhadores ao projeto empresarial (SEIFERT; VIZEU, 2015). Assumem como resolvido o conflito entre capital e trabalho, já que seria “lógica” uma adesão generalizada dos trabalhadores a um sistema do qual precisam, como se a recíproca não fosse verdadeira. Embora se trate de interlocutores imprescindíveis à própria dinâmica dos processos organizacionais, os trabalhadores possuem um status inferior, sendo-lhes negada a possibilidade de participação ampla nas decisões do negócio como um todo (PARKER, 2021). O resultado é uma espécie de jogo de espelhos, em que de um lado os empresários e os seus representantes se dão por satisfeitos com suas decisões e, de outro, os trabalhadores se resignam ao silêncio e, em alguns casos, à sabotagem do que foi decidido, escapando da ideia de pleno controle da organização (TOURISH, 2019). 

Entender como os trabalhadores se posicionam em relação a aspectos como o crescimento da empresa, em primeiro lugar, preenche uma lacuna por permitir humanizar os conceitos, já que passam pelos sujeitos tais processos, mesmo que em muitos casos eles sejam subsumidos. Em segundo lugar, porque permite politizar conceitos reduzidos aos seus aspectos funcionais em boa parte da literatura da administração (SHATIL, 2020). Chamamos a atenção para a força que as representações possuem na vida em sociedade e para a necessidade de integrar os trabalhadores, sujeitos historicamente negligenciados do ponto de vista político nas organizações. Pelas representações atreladas às práticas cotidianas, pode-se compreender como se configuram as relações de trabalho e como se posicionam os diferentes agentes nas organizações, uma vez que o estudo das representações sociais auxilia a compreender como um dado fenômeno – no caso deste trabalho, o crescimento econômico – adquire sentido e significado junto ao grupo de trabalhadores. Trata-se, portanto, de uma possível compreensão de como os grupos e coletividades se orientam, considerando-se tais representações como “lentes” ou esquemas cognitivos que balizam as práticas cotidianas.

A perspectiva que orienta a pesquisa se volta às contradições no processo de construção da realidade socioeconômica, com interesse emancipatório e em favor da mudança social (KLIKAUER, 2018). Dessa forma, é oportuno tomarmos como crítico este texto, considerando: a) a historicização da realidade estudada, já que é preciso que a ideia de crescimento empresarial seja avaliada segundo aspectos sociais e históricos, sem universalização e naturalização de modelos prévios na sua concepção; b) a percepção de contradições que evidenciam relações de poder nos processos sócio-organizacionais, atentando para a relação de sujeitos diversos na produção da realidade estudada; e c) o interesse de se produzir conhecimento que possa servir de recurso para a mudança em relação às possíveis opressões advindas do modelo gerencialista no âmbito organizacional (PAES DE PAULA, 2015; FARIA, 2009).

Além disso, para abarcar a complexidade do fenômeno estudado fez-se necessária a adoção de diferentes prismas, respeitando-se as contribuições e limites de distintas abordagens, com o entendimento de que é possível um diálogo em favor de uma ótica que não simplifique os aspectos examinados. Nesse sentido, a perspectiva sócio-histórica presente na teoria das representações sociais e na análise francesa do discurso mostrou-se um viés analítico central, fornecendo à pesquisa subsídios para articular o sujeito (o trabalhador como unidade fundamental de análise) e a dinâmica sócio-organizacional (sendo o crescimento econômico um fenômeno dela decorrente). Para isso, o texto foi organizado em cinco partes além desta introdução. Nas seções seguintes, apresentar-se-á a fundamentação teórica do trabalho: num primeiro momento, discute-se o crescimento empresarial, tal como tem sido tratado de forma hegemônica no âmbito da administração e possíveis contradições quanto ao entendimento do fenômeno. Em seguida, aborda-se o lugar do trabalhador e das suas representações em sua prática profissional, como forma de compreender a construção de esquemas cognitivos partilhados que orientam as práticas do grupo tomado como base para este estudo. Imprescindível, portanto, articular a ideia de discursos organizacionais como formas de representações sociais, tendo como suporte a Teoria das Representações Sociais proposta por Serge Moscovici (2009) e as perspectivas de análise do discurso, considerando-se a vertente francesa, em que o discurso orienta as práticas sociais Aqui, a teoria das representações sociais serve de suporte explicativo para os posicionamentos decorrentes da articulação entre cognição, afeto e ação (JOVCHELOVITCH, 1996), marcando possíveis submissões ou resistências de trabalhadores em relação aos discursos administrativos hegemônicos. Por fim, apresentaremos a metodologia desenvolvida, o que precede a apresentação dos achados da pesquisa e as considerações finais.

2. Crescimento empresarial para além da economia

A economia parece naturalizar a ideia de que há uma direção adequada para os negócios, e esta é a do crescimento (AGUILERA CASTRO, 2010). Os negócios tenderiam a ser ajustados em função da eficiência econômica e, por isso, é esperado que sejam racionais as decisões voltadas à maximização do resultado empresarial, o que termina por priorizar uma gestão que põe a racionalidade econômica em primeiro plano (VALERI, 2021). A noção de maximização de resultado tem sido o tom dominante da literatura de administração ao enfatizar técnicas e formas de decidir baseadas no racional, isto é com foco no ganho econômico máximo em detrimento do não racional, tido como subjetivo, sujeito a falhas e, assim, indesejável, ainda que haja críticas a essa ótica (ALCANIZ; AGUADO; RETOLAZA, 2020). 

De perspectivas originalmente voltadas à maximização produtiva, como a de Taylor (1995), os processos de crescimento empresarial passaram a se tornar mais complexos para responder às necessidades do capitalismo. Os desafios de diversificação de atividades passaram a ser cotejados com os de integração, de maneira que um contínuo resultado positivo pudesse ser obtido pela administração. Entraram em pauta discussões empresariais sobre fusões e aquisições (IRELAND; WITHERS, 2021), integração produtiva (GEHRINGER, 2013), associativismo (PONS-PONS; VILAR-RODRÍGUEZ, 2019), redes (ALI; ANWAR, 2021), internacionalização (GRØGAARD; RYGH; BENITO, 2019), e tecnologia (ROBERTSON, 2016; MEYER, 2007). 

A noção de crescimento empresarial passou a ser também associada à ideia de crescimento econômico, nem sempre preocupada com a redução das desigualdades (FARIAS; TEIXEIRA, 2022), motivo pelo qual prevalece na administração uma perspectiva gerencialista (CUNHA, 2021). Cabe aqui pontuar a distinção entre desenvolvimento e crescimento econômico, em termos de efeitos na vida em coletividade. Para Bresser Pereira (2014), desenvolvimento econômico implicaria necessariamente uma mudança estrutural na economia, na cultura, na política e na própria organização do Estado, ao passo que o crescimento econômico pode não implicar mudanças significativas (permanecendo em nível isolado, por exemplo). O autor nos alerta, entretanto, que tal diferenciação é pouco relevante, uma vez que o desenvolvimento econômico depende de crescimento econômico para que as mudanças estruturais se efetivem:

O crescimento econômico às vezes pode ser injusto, às vezes ser ofensivo à natureza; o desenvolvimento humano, por definição, não pode, porque para que este se materialize não é suficiente melhorar os padrões de vida; é também necessário observar algum avanço nos outros quatro objetivos políticos que as sociedades modernas definiram para si próprias. Esses cinco objetivos não são compatíveis, também conflitam entre si. Isso é verdade particularmente em relação ao desenvolvimento econômico, que, a longo prazo, é uma condição necessária para atingir os outros objetivos, mas que a curto prazo geralmente conflita com eles. É por isso que o compromisso – o princípio fundamental da política – é sempre necessário para levar adiante os objetivos e os interesses conflitantes (BRESSER PEREIRA, 2014, p. 56). 

No tocante à lógica empresarial, entretanto, nem sempre se nota a presença de valores em prol da construção de uma vida social pelo trabalho. Pelo contrário, o que em geral se observa são a criação e o uso contínuo de recursos e ferramentas nas práticas de gestão voltadas para a expropriação. A tecnologia, por exemplo, tem destaque nesse quadro em função da sua capacidade de incremento produtivo a partir do mesmo nível de insumo, o que faz da eficiência produtiva e da produtividade crescente justificativas suficientes para o investimento tecnológico maciço e para a intensificação do trabalho. 

A adoção de recursos que potencializam a produção pela tecnologia pode, então, se traduzir como um modelo poupador de mão de obra, que intencionalmente associa a intensificação tecnológica à redução da quantidade de trabalhadores empregados, conforme discutido por Rezzini, Fraga e Mori (2019) em uma análise comparativa de países da OCDE e da América do Sul. Muito embora se saiba de que o emprego da tecnologia não seja sinônimo direto de desemprego, há que se considerar, entretanto, que há uma relação entre redução no nível de empregos baseados em atividades simples e repetitivas e a adoção de tecnologia. Isso porque nem sempre o intuito do crescimento se atrela à possibilidade de partilha, junto aos sujeitos envolvidos nos espaços produtivos, de possibilidades de ascensão e desenvolvimento geral. Em casos como o de países de industrialização e participação no mercado global recente, por exemplo, criam-se condições para que apareça o desemprego estrutural, que se caracteriza pelo desaparecimento de ocupações por conta do emprego maciço de tecnologia. Ademais, as novas formas de organização do trabalho pela via do emprego de tecnologia, como a gestão por algoritmos e demais aspectos que caracterizam a chamada indústria 4.0 aceleram a precarização e opressão do trabalhador na era digital (ANTUNES, 2020).

Tidos apenas como mero recurso produtivo por centenas de anos, os trabalhadores foram relegados a um lugar periférico no contexto empresarial. Uma força massificada e sem rosto, uma vez que os processos de racionalização produtiva prescindiam conhecer suas características, interesses e potencialidades. Já que eles representavam apenas engrenagens de uma grande máquina industrial, sua existência só não era propriamente dispensável porque eram necessários ao funcionamento dos processos produtivos. Isso não quer dizer que não tivessem relevância política, contudo; sua força nunca foi desconsiderada, mas encoberta. E a prova disso são as tentativas sistemáticas de esvaziamento e de desmobilização das iniciativas antiempresariais. Do ponto de vista da empresa, seu papel foi relegado a um plano secundário, uma vez que não lhes cabia opinar sobre um projeto que não lhes pertencia, e tampouco concebiam ou controlavam – o que caracteriza o processo de alienação (TRAGTENBERG, 2005). Mas seu registro de existência a eles pertencia, o que justifica resgatar as representações dos trabalhadores no contexto empresarial. Por suas práticas cotidianas, os grupos de trabalhadores são agentes fundamentais no processo de estruturação e dinâmica nas organizações, constituem-se como a base material, via emprego da mão-de-obra, para a eficiência produtiva que garante, como consequência e como propõem os modelos administrativos, a lucratividade e o crescimento empresarial. Mas como se posicionam os trabalhadores nesse processo? Como representam suas práticas e atribuem sentido, pelo trabalho, à ideia de crescimento econômico? Como se articulam as dimensões cognitiva, afetiva e comportamental em meio às organizações e suas práticas de gestão estabelecidas?

3. O trabalhador no processo produtivo e na lógica do crescimento econômico

Se por um lado o gerencialismo estabelece a racionalidade e seus desdobramentos no processo decisório e na cadeia produtiva como base para a ideia de crescimento econômico, por outro lado tal perspectiva é imprecisa sem que se avalie como se estabelece a dinâmica produtiva a partir das articulações e inter-relações entre agentes nesse processo. Nas relações de trabalho no capitalismo há trocas entre diferentes agentes e grupos sociais a partir da propriedade privada e a detenção de meios de produção por parte de uns, em detrimento da entrega de força produtiva por aqueles que não dispõem de tal aparato material. A legitimação para esta distribuição assimétrica de bens e patrimônio se justificou diferentemente ao longo da história a partir dos valores e elementos simbólicos que orientaram a forma de os sujeitos individuais e coletivos conceberem a sua realidade, articulando a dimensão material e simbólica. Nessa articulação, entretanto, há ambiguidades: se por um lado as ideias e valores apregoados pela emergente burguesia na modernidade (tais como individualismo, propriedade privada, mérito, liberdade em relação ao Estado e ao coletivo, por exemplo) aparentavam formas mais justas e equitativas de distribuição e acesso a bens (em relação ao contexto medieval), por outro mascaravam desigualdades em relação aos lugares e possibilidades dadas aos diferentes sujeitos nas novas relações de produção. 

Na ótica de que a individualidade e a liberdade seriam as bases para o progresso social e econômico, foram desconsiderados aspectos estruturais e concretos na maneira como as relações são produzidas, o que universalizou o sistema produtivo e econômico a partir das competências e predisposições dos sujeitos, tomados pelo princípio da igualdade. Cabe aqui pontuar as contradições dessa perspectiva: se o acesso a recursos essenciais para o trabalho é distinto entre sujeitos sociais, considerando renda, formação profissional, vínculos sociais etc., não há as possibilidades de ascensão social e econômica para todos de forma equânime. A manutenção de uma noção do ser humano como igualitária, universal e racional é abstrata e não auxilia a compreensão da complexidade das relações sociais e econômicas. A compreensão acerca do sujeito depende de aspectos valorativos, econômicos e de interesses políticos na dinâmica simbólica estabelecida em cada contexto, pois ela mobiliza consciências e subjetividades dos envolvidos numa perspectiva sócio-histórica. Como efeito da naturalização enquanto operação ideológica, temos na dinâmica social no capitalismo a manutenção da ideia de que todos podem vender pelo trabalho, o que sustenta o sistema a partir de uma “ética da contribuição” aos contextos organizacionais que ditam as formas de produção ao converter trabalho em mercadoria. 

Uma vez cientes das assimetrias advindas das relações de trabalho e das impossibilidades de equidade social, os trabalhadores têm se mobilizado em relação à forma como as práticas de gestão impactam a distribuição de renda e na produção da realidade social, despertando, no nível da consciência, sobre as contradições como recursos para a mudança social, a partir da emancipação. É, portanto, em termos de reflexividade e crítica que se manifestam vários posicionamentos nas relações de trabalho, sendo necessário escutá-los para compreender seus processos de construção da realidade social, como suas representações acerca do crescimento empresarial. Em particular a questão da motivação para o trabalho tem sido objeto de atenção há muito tempo. Embora a perspectiva dominante seja comportamental, autores como Tweedie (2020), a partir de uma discussão lastreada na Filosofia, mostra que motivação está ligada a aspectos mais profundos, frequentemente ofuscados nas relações de trabalho.

No que se refere à formação da consciência humana, expressivos foram os trabalhos de Vygotsky (1997, 2001) e González Rey (2005), que entendem que o sujeito e sua psique são produtos e produtores de si e de sua realidade. Entendemos, portanto, a constituição do sujeito e sua subjetividade como um dinâmico processo de interiorização do mundo e suas normalizações a partir das interações sociais e tendo a linguagem como principal elemento de articulação entre interioridade e exterioridade. Quanto mais articulados os sujeitos em relação à partilha de valores e representações, maiores as expressões de sua força coletiva nas relações de produção da realidade social, segundo seus interesses e intencionalidades. Decorre daí a força das representações sociais nas práticas cotidianas, o que é fundamental para compreensão do papel dos trabalhadores como agentes no processo de produção e crescimento econômico. 

Daí a importância de se compreender, junto a grupos de trabalhadores, a formação de representações associadas ao universo das organizações empresariais. As representações sociais podem ser entendidas como construções de sentido (indicativos perceptuais, ideias, imagens, saberes) que servem de referência a uma dada coletividade em suas trocas com o mundo, desenvolvendo-se, em sentido cognitivo, por meio de processos de ancoragem (categorização e associação de ideias e sentidos a elementos familiares aos sujeitos e sua realidade) e objetivação (materialização de uma abstração, ou seja, transpor para um correspondente real e material o que se formou no campo do pensamento), segundo Moscovici (2009). Para este autor, as representações sociais são fundamentais como categorias de análise tanto micro quanto macrossociais, uma vez que, de modo similar às proposições de Vygotsky (1991; 2007), possibilitam a partilha de conteúdos nas interações sociais ao mesmo tempo em que permitem reapropriações individuais em relação ao todo, ao que está histórica e socialmente legitimado e instituído. Nesse sentido, como forma de abarcar a complexidade que caracteriza as relações de trabalho, evitando reducionismos percebidos nas pontuações gerencialistas (SHATIL, 2020).

No tocante à apreensão de tais percepções, recorremos à análise do discurso como referencial teórico-metodológico para operacionalização deste trabalho, dada sua contribuição aos estudos organizacionais de caráter crítico, e por se tratar de um campo e método cujo foco está na dimensão ideológica na construção do sujeito e do discurso. Trata-se de um campo interdisciplinar que abraça contribuições da linguística, do materialismo histórico, da psicanálise (ORLANDI, 2015), portanto adequado para a complexidade dos fenômenos que tomamos como objetos de estudo. Na análise do discurso, o discurso é entendido como um componente semiótico da prática social, um conjunto sistematicamente organizado que expressa os significados e valores de vida coletiva organizada, organizando e estruturando o um tópico particular, um objeto, um processo (FIORIN, 2005; ORLANDI, 2015). 

4. O lugar do discurso na formação de representações sociais: aspectos dialéticos e dialógicos 

Para compreender a articulação entre discurso e formação das representações sociais de trabalhadores, é importante mencionar que a própria noção de discurso é variável, haja vista a existência de diferentes escolas sociológicas, psicológicas e linguísticas. De modo geral, autores como Pêcheux (1990) e Maingueneau (2000; 2005) apontam para o fato de que as produções discursivas estão para além de enunciação e estrutura linguística, já que carregam elementos ideológicos e históricos que regulam relações entre sujeitos e entre outros discursos, dinamizando a realidade social. Influenciados pelos estudos de Althusser (2001), os autores da análise de discurso francesa especificam que a linguagem e as práticas discursivas materializam traços ideológicos a partir de posicionamentos dos sujeitos, sejam individuais ou coletivos. Nesse sentido, pois, o discurso é uma instância relacional, pois se conecta e se regula junto a outros discursos que servem de parâmetro para o estabelecimento de práticas sociais, dentre elas, as práticas de dominação e reprodução do poder legitimado.

Foucault (2014) é também importante referência para a análise dos efeitos dos discursos nas condições de produção social, apontando que, por meio de dispositivos discursivos diversos nas práticas sociais, o poder se operacionaliza. Uma vez institucionalizados, tais dispositivos estabelecem a vontade de verdade, que visa ser reforçada e conduzida em todas as suas práticas, podendo, assim, exercer sobre os outros discursos uma espécie de coerção. O discurso, assim como a linguagem, é engendrado em um processo sócio-histórico lento e complexo, pautado, supervisionado, ancorado e tacitamente amalgamado ao poder. O que Foucault (2014; 2017) nos apresenta como poder é algo que atua com e paira sobre os discursos, validando-os ou invalidando-os, legitimando-os ou deslegitimando-os, segundo suas regras, tipificações e anseios. Se o poder é o que legitima o discurso, é ele também que permite ou não a existência ou subsistência de qualquer verdade, ou realidade, concebida em uma sociedade. Assim, é possível notar que não somente existe uma atuação de controle via discurso e poder, mas uma manutenção constante desse controle via instituições, para governar e manter sob controle os sujeitos presentes no jogo discursivo. Entendemos, então, que o campo discursivo tende à institucionalização pela força e continuidade que alguns discursos assumem em contextos históricos e sociais, atuando de modo generalizado e coercitivo sobre sujeitos diversos. Tal processo, entretanto, não é unilateral, uma vez que os discursos decorrem de formações discursivas a partir da socialização. 

Já para Fairclough (2001), em sua proposta de uma análise crítica do discurso, o discurso é uma prática tanto formadora quanto transformadora da realidade. Nessa perspectiva psicossocial e dialética, o autor pontua que, pela via das formações discursivas se propõem as práticas sociais, possibilitando tanto a interiorização e reprodução das representações e ideias institucionalizadas, quanto as formas de resistência e demais estratégias de agenciamento, pela ressignificação e reconfiguração dos discursos no cotidiano. Diferentemente da ênfase ao aspecto mais marcadamente voltado à textualidade e presente nos autores da análise de discurso francesa – que tomamos como suporte neste trabalho – o autor nos propõe a necessidade de marcar a explicitação dos mecanismos de produção discursiva enquanto prática social. Vale aqui pontuar que, para fins de articulação das vertentes de análise de discurso com a teoria das representações sociais, o ponto nodal é: as formações discursivas são referências para a emergência das representações, tanto em seu aspecto linguístico e textual, na estruturação do discurso e em seus elementos, quanto em termos de contextualidade e tomando como inerentes os mecanismos e condições de produção dos discursos – considerando a institucionalidade, o exercício das formas de poder e materialização das ideologias nas práticas de socialização.

Em articulação à teoria das representações sociais proposta por Moscovici (2009) e também debatida por Jodelet (2001; 2005), compreende-se aqui que as práticas discursivas são fundamentais para a formação das representações sociais. A partir das contribuições dos autores, entendemos que as representações sociais são as formas simbólicas que orientam, de modo partilhado, as grupalidades, articulando esquemas cognitivos (pensamentos), afetos (posicionamentos e atitudes) e ações (práticas de socialização) em história e contextualidade. É por meio das representações sociais que os grupos tornam familiares (aportados em seu universo simbólico) e aplicáveis os sentidos apreendidos por meio de discursos e institucionalidades, num movimento dinâmico que marca a tensão entre o sujeito e o social. Trata-se, portanto, de um processo de interpretação do mundo que mobiliza a interação de agentes diversos em suas relações, incluindo-se as relações de trabalho e produção material da sociedade. 

Moscovici (2009) esclarece sobre a existência de dois mecanismos no processo de formação das representações. O primeiro deles, o de ancoragem, implica a categorização ou aporte de uma ideia ou objeto em um sistema simbólico já estabelecido, tornando-os codificáveis, compreensíveis. É o processo de “tornar familiar” o que se apresenta como estranho à lógica grupal. Como exemplo da temática que nos serve de estudo, trata-se de categorizar a noção de crescimento econômico como algo que seja validado e aceito pelo grupo de trabalhadores, por exemplo, a partir da interiorização dos discursos gerenciais hegemônicos. Se, em intencionalidade, a proposição do crescimento econômico, em sentido gerencial, se volta ao aumento da produtividade e da consequente lucratividade corporativa por meio de técnicas produtivas, no contexto do trabalhador essa ideia pode se configurar como possibilidade de melhorias das condições materiais, individuais e/ou coletivas, mesmo que, na prática, tal operacionalização não ocorra de forma partilhada, dada a lógica do capital. Poderíamos supor que, no processo de ancoragem, por exemplo, já haveria certa naturalização dos discursos corporativos, como mecanismos de ação ideológica, orientando trabalhadores à subsunção e à expropriação na maneira como se configuram, em termos de esquemas cognitivos, a significação e categorização da ideia de crescimento econômico.

O segundo processo, o de objetivação, consiste em tornar concreta e visível tal ideia em nossa realidade cotidiana. Em relação à exemplificação proposta, poderíamos supor a objetivação da representação de crescimento econômico pelos trabalhadores a partir do repasse de ganhos sob a forma de salário, o que promoveria melhoria das condições de trabalho e maiores chances de acesso a bens, serviços e demais recursos necessários à manutenção da vida. Assim, ao articularmos ancoragem e objetivação na formação das representações de crescimento econômico, tem-se, como possibilidade, a operacionalização ideológica, uma vez reproduzida a lógica de dominação pela via do capital. Mas há também possibilidades de ressignificação e reformulação da ideia, haja vista o poder de ação (agenciamento) e a capacidade criativa e produtiva das grupalidades nesse processo de atribuição de sentidos. Podemos também vislumbrar, a partir de tal articulação, o surgimento das práticas de resistência e mobilização para a mudança social, a depender do nível de criticismo que orienta o contexto semântico dos sujeitos analisados. Compreender, pois, as representações de trabalhadores sobre o crescimento econômico e seus efeitos nas relações de trabalho, incluindo-se aí as condições e a organização das práticas cotidianas numa organização, é fundamental para que se tenha maior precisão da dinâmica sócio-organizacional, considerando sua complexidade. 

5. Metodologia

Como mencionado, neste estudo o objetivo é analisar as representações sociais do crescimento empresarial e suas relações com as condições de trabalho sob a ótica dos trabalhadores industriais. Não ignoramos que cada indivíduo experimentou vivências particulares na organização em que atua profissionalmente, o que é próprio da esfera da subjetividade da existência de cada um; todavia, interessam-nos as possibilidades sociais de representação, uma vez que os contextos, ainda que distintos, e as experiências, ainda que individualizadas, expressam algo além de vivências pontuais, considerada a existência de uma dimensão partilhada e coletiva junto aos trabalhadores reconhecendo-se, identificando-se e afiliando-se uns aos outros como grupo social. Falamos de uma existência para além de ser empregado da metalúrgica, ou da montadora de automóveis; falamos da existência social enquanto trabalhadores, algo não limitado a um contexto empresarial específico, o que nos permite aproximar as histórias desses trabalhadores: no fundo, dizem respeito ao mesmo fenômeno social.

Conhecer as representações é o primeiro passo no sentido de humanizar a organização, reconhecendo outros interlocutores além dos empresários e seus representantes. Em um estudo desse tipo são indicadas abordagens qualitativas de pesquisa, mais adequadas para explorar em profundidade aspectos como os apontados. O estudo foi executado por meio de um método de inspiração indutiva a partir de entrevistas baseadas em narrativas das trajetórias profissionais dos trabalhadores em seus contextos. O locus desta pesquisa foi composto por empresas industriais da região metropolitana de Belo Horizonte, levando em conta sua importância, dimensões, número de trabalhadores, e setores diversificados. Não se desconsideram as particularidades de cada contexto: mas buscamos aqui, tendo em vista o objetivo de captar as representações sociais atreladas à ideia de crescimento empresarial, aspectos comuns, partilhados, presentes nas formações discursivas de cada trajetória. 

A formação de um contexto de captação de dados constituiu um desafio. Após o contato com as empresas por sua representatividade em Belo Horizonte e região metropolitana, tentou-se também contato com os sindicatos de trabalhadores dessas indústrias a fim de marcarmos as entrevistas. Nos locais onde isso não foi possível, fomos para as portarias das fábricas a fim de fazer um contato direto com eles e convidá-los a participar da pesquisa, dadas as implicações políticas deste tipo de trabalho e seus impactos juntos aos envolvidos. Aos participantes, foram explicados os objetivos do trabalho e esclarecidos os intuitos acadêmicos da pesquisa, o que marca o cumprimento aos aspectos éticos em pesquisas sociais, com coletas de termos de livre consentimento e esclarecimento por parte dos envolvidos. Ao todo, foram entrevistados nove trabalhadores de quatro indústrias, denominadas ficticiamente aqui Montadora, Metalúrgica, Siderúrgica e Alimentícia, uma quantidade adequada tendo em vista a natureza qualitativa da pesquisa, que se volta sobre a relevância e profundidade dos dados. Elas foram selecionadas por serem empresas com marcas reconhecidas, com importante participação nos seus segmentos de mercado, e por já estarem instaladas há um tempo considerável na região, o que objetiva a noção de crescimento empresarial proposta pelos discursos administrativos.      

Quadro 1 - Identificação do segmento da empresa e codificação dos entrevistados

Segmento

Codificação

Segmento

Codificação

Segmento

Codificação

Alimentícia

Romeu

Metalúrgica

Martinho

Montadora

Sávio

Metalúrgica

Laerte

Montadora

Benjamim

Montadora

Joaquim

Metalúrgica

Tulio

Montadora

Dario

Siderúrgica

Tadeu

Fonte: Elaborado pelos autores.

O perfil de sujeito desejado foi o de trabalhador com pelo menos dez anos de experiência profissional nas empresas abordadas, e disposto a participar de uma entrevista. As narrativas das trajetórias pessoais e profissionais foram coletadas por meio de entrevistas individuais em profundidade, todas elas baseadas em um roteiro semiestruturado composto por quatro grandes blocos – trajetória individual, trajetória da empresa, papel dos empregados na história da organização e o futuro da empresa – que orientou, como ponto de partida, os entrevistados a discorrerem sobre sua trajetória pessoal e profissional na organização. O roteiro semiestruturado de entrevistas foi elaborado com base em lacunas existentes na teoria existente sobre histórias empresariais, mote do projeto de pesquisa original[1]. A história empresarial, assim, ainda que seja apresentada como unívoca, e como resultado direto do que foi oficialmente documentado ao longo de sua existência, abriga outras possibilidades de construção social (nos termos de BERGER; LUCKMANN, 2005), pois os trabalhadores e sua memória, fruto de vivências ao longo da existência da organização, são orientados por outros vetores, não sendo ilegítimas suas histórias, apenas silenciadas pelo aparato organizacional (DE DECCA, 2004).

Dos nove entrevistados, aqui apresentados com nomes fictícios, sete eram líderes sindicais, aspecto particular, mas não limitador, a ser considerado nas análises a seguir. Tendo em vista que entramos em contato com os sindicatos, o acesso a essas pessoas foi mais fácil, além de elas serem bastante solícitas. Apenas os entrevistados da Metalúrgica e o da Alimentícia não tinham ligações com lideranças sindicais. As entrevistas, de cerca de uma hora e meia de duração, foram levadas a cabo presencialmente antes da pandemia durante um período de cerca de oito meses sempre fora do ambiente de trabalho, a fim de que o trabalhador não se sentisse constrangido em seu relato. Ao realizar a pesquisa fora do ambiente de trabalho, deixamos o trabalhador mais à vontade para contar vivências que possivelmente a história oficial da empresa omitiria, complementando, assim, essa visão oficial. Fizemos questão de esclarecer desde o começo, para cada entrevistado, que aquelas entrevistas seriam utilizadas somente para finalidades acadêmicas, e que seus nomes não seriam identificados, dissipando assim possíveis temores quanto a eventuais retaliações.

Cada entrevista foi gravada e transcrita integralmente em um editor de texto por um membro da equipe que participou da coleta de dados e da pesquisa como um todo. O corpus formado a partir das narrativas das histórias de vida foi tratado por meio da técnica da análise francesa do discurso, uma série de procedimentos estruturados para a identificação e análise dos discursos enunciados de forma explícita, implícita ou silenciados (FIORIN, 2005). Como já mencionado em seção anterior, partimos da ideia de que os discursos fazem uso de inúmeras estratégias de persuasão ideológica, que um exame rápido poderia talvez ignorar. Foi levada a cabo uma série sistematizada de procedimentos, que foram usados em conjunto ou separadamente, conforme o enunciado. Eles foram relacionados à identificação e análise: a) dos principais aspectos da análise lexical; b) dos principais temas e figuras (explícitos ou implícitos) dos discursos, inclusive os personagens; c) dos principais percursos semânticos estruturados a partir dos temas e figuras; d) dos principais aspectos interdiscursivos; e) dos principais aspectos refletidos e refratados nos discursos; f) dos principais aspectos das condições de produção dos discursos; g) dos principais discursos presentes no texto; h) dos principais aspectos ideológicos defendidos nesses discursos; i) dos principais aspectos ideológicos combatidos nesses discursos; e j) da posição do discurso hegemônico em cada um dos textos em relação aos discursos hegemônicos na sociedade em que se situam. 

Um ponto importante quanto à articulação teórico-metodológica: buscamos, no nível textual e linguístico por meio da análise de discurso, a identificação de elementos que pudessem apontar, por sua vez, os contextos de produção das formações discursivas e das representações sociais, em termos de ancoragem e objetivação. Não se desconsiderou, portanto, o viés sócio-histórico e dialético das práticas discursivas e práticas sociais. Na análise das entrevistas, dois recursos foram bastante empregados: em primeiro lugar, nos fragmentos discursivos, foram sublinhados trechos, indicando material que foi objeto de tratamento. Em segundo lugar, podem ter sido usadas aspas para recuperar e reforçar expressões empregadas pelos entrevistados, expressões estas que se prestam ao uso das técnicas mencionadas. Entre as limitações da pesquisa, destaca-se a recusa de alguns trabalhadores em participar – decisão que foi respeitada. Isso nos impediu de colher mais versões, principalmente acerca da história da Alimentícia e da Metalúrgica. Além disso, os trabalhadores entrevistados falaram muito mais do presente ou de situações hipotéticas do que do passado. Entendemos, porém, que qualquer pesquisa que lide com memórias individuais e suas articulações com aspectos coletivos abarca tensões e, por isso, enfrenta limites diversos. Acreditamos que um dos grandes méritos metodológicos da pesquisa é continuar uma tendência já iniciada nos estudos históricos de pesquisar novas fontes e valorizar novos atores históricos, sem falar na contribuição da investigação para a elaboração de novas narrativas sobre temas já estudados, o que faremos na próxima seção.

6. Análise e discussão do material empírico

A análise de discurso identificou duas categorias discursivas básicas: a) mudanças no contexto e efeitos sobre a empresa; e b) crescimento da empresa. Estas categorias são examinadas em subseções específicas na sequência. 

6.1 Mudanças no contexto e efeitos sobre a empresa

Um primeiro discurso identificado na análise do discurso foi o das mudanças no contexto, com desdobramentos sobre as organizações. Este discurso é composto pelos percursos semânticos: a) dos efeitos das mudanças contextuais sobre a organização; e b) da ignorância política do trabalhador. A posição que Tadeu, trabalhador da Siderúrgica assume a respeito da situação da empresa é contextualizada historicamente, portanto fruto da observação da trajetória recente da organização no seu contexto específico. No fragmento discursivo (001) ele avaliou as mudanças de governo no país e os efeitos dessas mudanças sobre a organização:

(001) É... Talvez eu não vá conseguir lhe responder isso porque a gente de manutenção... Não é que a gente não seja político, né? Não tenha interesse. Mas é porque é o seguinte, a gente de manutenção fica muito alienado com a manutenção. Entendeu? Pra mim vou dizer que pouco importava quem estava... Pouco importava um presidente, assim... (... ) Essa não é uma grande preocupação da gente, de... Como é que eu posso dizer? A gente é muito sobrecarregado com tarefas e então você acaba nem dando muita importância pra essas mudanças, entendeu? Eu tenho uma visão política assim... Eu sou uma pessoa ativista, sabe? É... mas é... . eu costumo separar as coisas, sabe? (... ) Igual essa questão de... Eu acho assim: no geral, acredito que os últimos governos que tiveram no Brasil – do Lula e da Dilma. A gente como operário, pra nossa atividade, em questão de retorno financeiro dessa classe, não senti grandes mudanças não. Agora, se você for olhar o aspecto “Brasil” a gente tem uma noção, que mudou classes, né? Que surgiram novas classes sociais. A gente acredita, pelo aquecimento que está tendo no comércio, que melhorou a vida de muita gente. Mas reflexo pra gente que trabalha lá, não vejo nenhum não. 

Os personagens que aparecem no discurso (001) são, explicitamente, os trabalhadores do setor de manutenção, o ex-presidente Lula e a presidente Dilma, metonímias dos seus respectivos períodos de governo, as novas classes sociais e, de forma implícita, o próprio enunciador. Tadeu adota uma postura autocrítica em relação aos trabalhadores do seu setor, afirmando que sua área, o volume e o ritmo de trabalho os tornariam indiferentes em relação ao cenário político do país (seleção lexical “a gente de manutenção fica muito alienado com a manutenção”). O enunciador, ao se inserir no coletivo “a gente”, metonimiza a posição política de uma categoria profissional como um todo, que seria em princípio pouco interessada em política pela natureza do seu trabalho. Todavia, em um segundo momento, o enunciador passa a usar a primeira pessoa do singular, indicando explicitamente que, ao contrário de seus colegas, ele teria “uma visão política” e seria “uma pessoa ativista”, não tendo notado melhorias concretas para os trabalhadores, embora reconheça que a população em geral se beneficiou com os últimos governos federais. Poder-se-ia já aqui apontar que, em termos de ancoragem para a construção de representações sociais, a noção de ativismo não se estabelece pela via coletiva, mas por posicionamentos individuais e episódicos de trabalhadores dispostos a incitar o despertar político dos demais. Por tal categorização, a politização dos trabalhadores depende de agentes que iniciem o processo reflexivo em termos de grupalidade e a objetivação de tal ideia dependeria, pois, de maior mobilização da classe. Entre os benefícios, o entrevistado destaca o surgimento de novas classes sociais, cujo implícito subentendido é a ascensão econômica e aumento da capacidade de consumo das classes C e D, e o aquecimento do comércio, sinal de melhoria das condições de vida de muitas pessoas.

Um segundo tema deste fragmento é a ignorância política do trabalhador. A julgar pelo enunciado, as próprias condições de trabalho proporcionam tal situação, dada a força da representação social, deixando-os indiferentes ao cenário político, o que explicaria as constantes ressalvas com as quais o entrevistado descreve a política no país, sugerindo que ele não está a par de todas elas. Trata-se de uma ignorância associada a uma configuração específica do trabalho, que afastaria os trabalhadores de quaisquer preocupações não circunscritas ao contexto produtivo imediato, corroborando o estudo de Thompson, Warhurst e Callaghan (2001). Os argumentos de certa forma colocam o trabalhador como elo fraco de uma cadeia, uma vez que sua ignorância a respeito do que vivem os condena a um trabalho duro e limitado, afastando-o das possibilidades de entender o mundo que o cerca. Há uma interdiscursividade presente nesse aspecto entre a os saberes e competências associadas ao trabalho imediato, mas que não são pouco relevantes para outras esferas da vida social.

A interdiscursividade também é observada em dois outros níveis: no primeiro, ao estabelecer a diferença entre “nós”, trabalhadores da manutenção alienados por conta do nosso trabalho, e “eu”, ativista e atento aos rumos políticos do país, o enunciador se coloca como distinto dos demais e, portanto apto a emitir certas opiniões, como a respeito dos desdobramentos recentes da economia do país sobre a empresa. No segundo nível, a análise do entrevistado separa o que seriam benefícios amplos obtidos pela população nos dois últimos governos, versus uma percepção de não tantas melhorias por parte dos trabalhadores da siderurgia. Um implícito pressuposto é que os governos mencionados atuaram mais no sentido de incluir pessoas alijadas da possibilidade de consumo em sociedade, o que explicaria que os benefícios não tenham sido sentido com a mesma magnitude em grupos já incluídos social e economicamente, como o dos trabalhadores de siderurgia.

No fragmento discursivo (002), Joaquim trata do tema das mudanças, particularmente do crescimento, que a empresa sofreu entre os governos FHC e Lula:

(002) No governo Fernando Henrique, a empresa trabalhava com o pé atrás. Ela produzia hoje, mas daqui a três, seis meses ela já avisava se continuaria com a produção, entendeu? Por isso é que nem eu estou te falando: você via isso, entendeu? Você via número dentro da oficina. Hoje não tem isso mais. Com o Lula ela expandiu. Quando eu comecei na funilaria, ela era um miolinho. Hoje ela tomou, vamos dizer, 40 ou 50% das prensas. Isso só no governo Lula, hein? Cresceu, então empregou muito mais gente. Então a montadora, no governo Lula, o mercado pra ela abriu. 

Neste depoimento, são apresentados como personagens dois ex-presidentes do Brasil: Fernando Henrique Cardoso e Lula, que funcionam como metonímias de períodos recentes da história do país, a saber, entre 1995 e 2002 no caso dos dois mandatos do primeiro, e entre 2003 e 2010, no caso do segundo. De um “miolinho” que sempre produzia “com o pé atrás”, cautelosamente, no governo FHC, a Montadora passou a ser, no governo Lula, uma grande empresa, em franco crescimento. De forma implícita, a expansão da empresa com a “abertura do mercado para ela” alude aos avanços econômicos e sociais do país, em grande parte responsáveis por esse salto de que Joaquim fala. Há uma relação direta entre contexto econômico e atividade empresarial que é percebida e enunciada pelo entrevistado, o que está de acordo com os argumentos de Biancarelli (2014). 

6.2 Crescimento da empresa

No que se refere à segunda categoria de análise, o crescimento da empresa, os depoimentos registram o desenvolvimento dos negócios, independente do contexto. Esta categoria é composta pelos percursos semânticos: a) da expansão econômica da empresa; e b) das percepções dos trabalhadores sobre o processo. No primeiro percurso semântico, o crescimento da empresa é personificado: é destacado o papel de determinados diretores da empresa na promoção do crescimento da organização. Este percurso se assenta sobre dois temas: a) a responsabilidade pelo crescimento da empresa; e b) a reificação dos trabalhadores para deificação dos dirigentes. 

(003) Na época de seu Macedo, ela não tinha muito assim, né... Depois que ele faleceu, com o seu João Barbosa, ela cresceu... Ele fez uma nova administração na empresa, né? Ele fez crescer. Ele que fez, junto com... Mas foi mais ele o cabeça, né? Fez ela crescer de um modo tão grande que... Ela não tem só isso aqui... (... ) Macedo já tem o que... ? Tem muitos anos que ele morreu. Não lembro direito, não. Não lembro quando ele faleceu. A data certa eu não... Mas foi depois dele que começou a crescer. Não... já começou né? Com ele crescendo. Mas depois que ele faleceu aí foi... (... ) Eles cresceram, com a administração do seu João né? Ele é um cabeça nessa parte aí. Muito inteligente mesmo. 

O crescimento da empresa é atribuído pelo enunciador às ações individuais de certos gestores, destacando-se os personagens “Macedo” e “João Barbosa”. A seleção lexical associa o crescimento da indústria a João Barbosa: “com o seu João Barbosa, ela cresceu... Ele fez uma nova administração na empresa”. O entrevistado reafirma o papel de João Barbosa, recorrendo à repetição exaustiva de certas ideias: “Ele fez crescer. Ele que fez [ênfase], junto com... Mas foi mais ele o cabeça, né? Fez ela crescer de um modo tão grande que... Ela não tem só isso aqui...; Eles cresceram, com a administração do seu João né? Ele é um cabeça nessa parte aí. Muito inteligente mesmo”. Romeu até tenta ser flexível, dizendo que o crescimento foi promovido pelo senhor João “junto com”, mas omite os outros personagens para novamente falar do senhor João. Ele também chega a citar o senhor Macedo, mas o faz para enfatizar o peso do senhor João, seu sucessor: “Mas foi depois dele [Macedo] que começou a crescer. Não... já começou né? Com ele crescendo. Mas depois que ele faleceu aí foi...”. 

Um personagem que o fragmento (003) invoca é o do gestor marcado na lembrança dos empregados – o que se verifica nas constantes menções que Romeu faz ao senhor João Barbosa. Um tema implícito nessa figura é o do impasse sobre quem seria responsável pelo crescimento de uma empresa: a administração ou os empregados. Neste depoimento, vemos um trabalhador associando o crescimento a um dirigente, o que possivelmente se deve à identificação com sua liderança, seja por sua figura carismática, seja pela sua capacidade de melhorar a empresa e as condições dos trabalhadores. Este discurso assume a administração como responsável unilateral pela empresa, sendo seus os méritos pelo crescimento. Os empregados possuem um papel acessório, no qual são reificados para a deificação dos dirigentes (AKTOUF, 2000). Este discurso coaduna o discurso hegemônico atual na sociedade brasileira, que valoriza o trabalho intelectual em detrimento do trabalho braçal, fazendo com que o crescimento de uma empresa se deva mais à “genialidade” de quem planeja do que ao esforço (secundário) dos trabalhadores.

No segundo percurso semântico estão presentes os temas: a) da exploração dos trabalhadores; b) da desilusão dos novos profissionais ao ingressarem na empresa por conta de “propaganda” que não se verifica no cotidiano; e c) da melancolia quanto a uma empresa melhor no passado do que no presente:

(004) Eu só sei que a firma, ela cresceu muito, né? Ela cresceu demais, mesmo. Agora, toda firma tem o seu certo e seu errado né? Em matéria de salário, por exemplo, ela... A empresa ela é boa, ela é boa mesmo. Não tem como você falar que a empresa não é... Mas o que estraga ela é o salário (... ) Porque a empresa inteira não dá pra reclamar dela não. O problema todo é o salário... Acabou com [inaudível]. Ela tem é nome... Ela ficou foi com nome né? Ela ficou com o nome. 

A figura principal, que por meio de reiteradas prosopopeias chega mesmo a constituir uma personagem, é a empresa, que goza de boa reputação, tendo crescido bastante, mas à custa de baixos níveis de remuneração aos seus empregados. Vemos a indignação de um trabalhador que ganha salários baixos mesmo trabalhando em uma empresa renomada. Nesse fragmento, a seleção lexical ressalta o quanto a empresa cresceu e, interdiscursivamente, destaca seus pontos fracos. Mesmo ao elogiar a empresa, o enunciador insere elementos de questionamento, como os léxicos “né”, “demais”, “seu errado”, “mesmo”. Os elogios, assim, são permeados por críticas implícitas, todas elas relacionadas à remuneração. A insistência de Romeu em afirmar que a Alimentícia tem um bom nome no mercado reflete linguisticamente a sua importância. Contudo, refrata a necessidade que o entrevistado tem de convencer a si mesmo de que seus últimos anos valeram a pena, mesmo com a evidente exploração, o que leva à desilusão. Na Siderúrgica, os estagiários se decepcionam ao ingressar na empresa, o que se relaciona à forma exagerada pela qual a empresa se promove em suas propagandas:

(005) [... ] há uma procura enorme de pessoas querendo trabalhar no grupo da siderúrgica. Porque como toda empresa grande, tem o nome, tem tecnologia lá dentro e as pessoas todas têm vontade de trabalhar nela... ou de estagiar ou de trabalhar. Só que... depois que a pessoa entra lá, eu acho que não é tudo aquilo que ela imagina. Na época em que eu entrei lá, por mais que não tivesse a modernidade que tem hoje, também não tinha aquela propaganda toda. Acho que quem entrava lá se desiludia menos. Acho que hoje quem entra... pode se desiludir mais. Porque eles usam uma propaganda muito grande, e eu vejo ex-estagiários que saíram de lá... Eles tinham dois propósitos: desenvolver-se no estágio, né? Aprender, e tudo... e depois até tentar ficar. Mas muitos deles mostraram que não queriam ficar, porque eles estavam vendo que aqui não era aquilo que a empresa vende. O ambiente de trabalho é bom, mas ele fica muito restrito. 

Neste relato, vemos os personagens do estagiário e do trabalhador que, embora ingressem na empresa atraídos pela promessa de prosperar, se decepcionam. O entrevistado utiliza recursos lexicais que revelam um abismo interdiscursivo entre a expectativa e a realidade. Por um lado, recorre a seleções lexicais que sugerem novas oportunidades e perspectivas: “empresa grande, tem o nome, tem tecnologia”; “eles usam uma propaganda muito grande”; “desenvolver-se no estágio, né? Aprender, e tudo”. Por outro lado, utiliza termos que frustram as expectativas iniciais: “depois que a pessoa entra lá, eu acho que não é tudo aquilo que ela imagina”; “hoje quem entra... pode se desiludir mais”; “eles estavam vendo que aqui não era aquilo que a empresa vende”; “ele fica muito restrito”. Tais seleções lexicais remetem ao papel que a empresa tem não apenas diante de seus empregados e da comunidade ao seu redor, mas também dos universitários que buscam se aperfeiçoar por meio de um estágio. O entrevistado deixa implícito que a desilusão com o trabalho sempre foi uma forma de representação comum na Siderúrgica, embora isso tenha se acentuado ultimamente, um implícito pressuposto relacionado à intensificação das ações de promoção da Siderúrgica ao longo do tempo. Objetiva-se, portanto, a noção de o crescimento empresarial não promove ganhos para todos os agentes envolvidos no processo de produção econômica. Outro tema do fragmento (005) – recorrente em outros fragmentos discursivos – é o da melancolia: a empresa já foi um lugar melhor para se trabalhar no passado. No caso de Tadeu, contudo, temos uma visão ainda mais pessimista, já que trabalhar na empresa, segundo ele, já envolvia decepções mesmo há alguns anos – o que só se agravou. Quando ele reflete discursivamente o fato de a empresa ser grande, famosa e dotada de importantes recursos tecnológicos, ao mesmo tempo refrata a sua posição crítica diante da falta de oportunidades, uma vez que a organização não proporciona melhores condições de trabalho a seus trabalhadores e estagiários, o que influencia seu engajamento, corroborando Tsourvakas e Yfantidou (2018).

Sávio, trabalhador da Montadora, analisa o crescimento da empresa ressaltando os benefícios gerados para a comunidade e para os próprios trabalhadores:

(006) A empresa cresceu muito, né? Desenvolveu, melhorou muito o produto dela e isso acaba que se reflete lá fora né? Ela aumentou postos de trabalho porque ela passou a vender mais. (... ) Antigamente eles falavam que quando o trabalhador da montadora entrava numa loja e mostrava a funcional, todo mundo queria atender ele. Hoje não é assim mais não [risos]. É aquilo que eu te falei que deu uma reduzida grande. É estranho falar isso, eu não entendo muito, mas nós tivemos operador da montadora que chegou a ganhar seis salários mínimos. (... ) Então, quando a empresa cresce, a região cresce, traz novos investimentos, que hoje a gente vê aí. E acaba refletindo realmente pra todo trabalhador, né? Garante posto de trabalho porque o produto melhorou, cresceu... um produto que está consolidado no mercado, então... isso dá segurança pro trabalhador que está lá e dá segurança até pra quem tá administrando a cidade, né?

De acordo com o fragmento (006), o crescimento da empresa repercute de maneira positiva sobre o trabalhador e sobre a comunidade ao redor (conforme as seleções lexicais “melhorou muito o produto dela e isso acaba que se reflete lá fora né?”, “quando a empresa cresce, a região cresce, traz novos investimentos; acaba refletindo realmente pra todo trabalhador”; “isso dá segurança pro trabalhador que está lá e dá segurança até pra quem tá administrando a cidade”). Deparamo-nos aqui com a figura da empresa que melhora as condições de vida de todos, o tema da nostalgia dos tempos em que trabalhar no passado era melhor para o trabalhador, tanto em termos de salário quanto no que se refere ao reconhecimento profissional, o que reflete o espírito dos nossos tempos (zeitgest), conforme Gandini (2020). O tema implícito é o descompasso entre o crescimento da empresa e os benefícios que esse crescimento para o trabalhador e para a comunidade. Por um lado, Sávio enuncia que “a empresa cresceu muito”, ancorando a ideia de crescimento como um benéfico para a comunidade e para os próprios trabalhadores; mas, por outro, diz que antes, trabalhar na Montadora era motivo de admiração pela sociedade, além de eventualmente poder render um ótimo salário. Nesse sentido, a objetivação da ideia não se efetiva em termos de práticas sociais, o que marca uma contradição que orienta o trabalhador. Se, por um lado, categoriza-se o crescimento como uma possibilidade em que há ganhos para todos os envolvidos, por outro lado, não se encontram meios de objetivar tal ideia em termos de práticas sociais. Há uma interdiscursividade entre o crescimento da empresa e a perda salarial e de prestígio dos trabalhadores, o que é típico de uma forma privada de apropriação, na qual um pequeno grupo se apropria do excedente, à revelia da contribuição da maioria dos envolvidos para o resultado.

7. Discussão

O exame dos fragmentos discursivos na seção de análise traz pelo menos dois elementos que valem a pena serem discutidos com maior detalhe. O primeiro deles se refere ao fato de que é notória a construção de uma representação social das empresas como lócus de possibilidades de produção, provimento e possibilidade de satisfação e realização pessoal e profissional, sem a qual não se efetiva a existência material do sujeito enquanto individualidade. Aqui, as relações de trabalho são associadas à noção de empregabilidade, uma vez que a força produtiva dependeria de um contexto empresarial que viabilizasse, a partir da disposição de recursos para a produção, a construção da realidade econômica e social. Dito de outra forma, os trabalhadores entrevistados parecem representar de uma forma um tanto quanto objetiva as empresas e as relações de trabalho forjadas com elas como elementos produtores de uma materialidade nas suas vidas, de maneira que parece haver um entendimento de que sem aquele universo de base econômica e simbólica, muito de suas vidas não existiria. 

Se por um lado esta representação possui um lastro indiscutivelmente material, há uma perspectiva simbólica que naturaliza uma postura de certa forma “servil”, nos termos de Antunes (2020), às formas pelas quais as empresas atuam, particularmente no que se refere ao crescimento empresarial. Isso traz como implicação uma espécie de predisposição para lidar com o fato de que crescer para as empresas é inevitável, cabendo a eles invariavelmente se ajustarem, isto é, pagarem o preço – qualquer que seja ele – pelo crescimento. Isso não deixa de ser curioso entre entrevistados cujo perfil é, na maioria, composto por sindicalistas. Uma suposição que emerge é que o momento histórico do movimento dos trabalhadores, de enfraquecimento do ambiente jurídico-institucional e de precarização generalizada pode estar levando a uma estratégia de contenção de danos: assim, ter algum emprego e se submeter a condições piores é pode ser preferível a não ter nenhum emprego.

O segundo elemento é que tal noção se universaliza para além dos respectivos contextos abarcados e ilustra a força dos discursos reificados pela ciência administrativa, por exemplo, e que passa a ser incorporada e reproduzida por gestores e trabalhadores, sob a forma de representação social do crescimento econômico. Pela força da representação, estabelece-se a lógica de que o poder de ação do trabalhador é pequeno em relação ao poder das empresas, como se existissem independentemente dos sujeitos concretos que as estruturam e dinamizam, o que justificaria, de um lado, a aceitação pelos trabalhadores da organização e das condições de trabalho, apesar da angústia e da insatisfação em relação às possibilidades dadas pelo crescimento empresarial. Na articulação entre cognição, afeto e ação, base para a compreensão das representações sociais, conforme Moscovici (2009), Jodelet (2001; 2005) e Jovchelovitch (1996), nota-se a aceitação e naturalização das práticas empresariais pelos trabalhadores, mesmo que estas lhes sejam pouco satisfatórias e contra as quais pouco é possível fazer. O crescimento é algo inevitável, mas nem todos deles se beneficiarão.

Do ponto de vista político, tem-se aqui uma situação bastante complexa, haja vista a força das representações sociais na mobilização dos coletivos de trabalhadores para a mudança social. Ao que se depreende dos relatos aqui coletados e analisados pelo viés da textualidade, não se pode desconsiderar que o contexto de formação de tais práticas discursivas impacta diretamente a forma como o trabalhador, individual ou coletivo, se posiciona em termos de mudanças que também lhes beneficiem, efetivando, para além da ideia de crescimento, a ideia de desenvolvimento econômico, tal como propõe Bresser Ferreira (2014). Se o contexto de formação das práticas discursivas depende de como se criam tais discursos e como eles se institucionalizam, vale, então, marcar o compromisso ético e político das ciências administrativas na forma como se propõem a analisar e dirigir as práticas de trabalho em contextos organizacionais. Até que ponto os discursos gerenciais apregoados nas ciências administrativas têm levantado questionamentos sobre seus efeitos e como tais discursos têm se propagado, tanto em termos acadêmicos – na produção de conhecimentos e técnicas partilháveis na formação de administradores, por exemplo – quanto na prática estabelecida cotidianamente nos espaços organizacionais? 

 8. Considerações finais

Neste artigo analisamos as representações sociais do crescimento empresarial e suas relações com as condições de trabalho sob a ótica dos trabalhadores, para o que foi conduzida uma investigação qualitativa fundamentada em narrativas das trajetórias profissionais dos trabalhadores em seus contextos. O material coletado foi trabalhado por meio da análise do discurso, tendo originado categorias discursivas muito ambivalentes. De um lado, os trabalhadores se enxergam como desvalorizados, sub-remunerados em relação ao que contribuem para o negócio, mas despolitizados demais para resistir de forma articulada, e por isso se submetem a condições de trabalho cada vez piores. Por outro, percebem o crescimento como algo inexorável nas empresas em que trabalham em um contexto econômico de competição, atribuindo a expansão dos negócios à competência de dirigentes, minimizando seus próprios aportes para o processo.

As principais contribuições do estudo vão ao encontro de uma necessária problematização do crescimento empresarial. Em primeiro lugar, não se trata de um fenômeno ao qual as empresas necessariamente têm de aderir, sendo preciso “romper com o pressuposto da naturalização da ambição do crescimento enquanto objetivo orientador da atividade organizacional” (SEIFERT; VIZEU, 2015, p. 137). Essa noção ecoa a falácia da inexorabilidade do capitalismo e favorece que, em nome da finalidade econômica, haja uma expansão desigual e predatória, que acumula lucros ao mesmo tempo em que avilta os trabalhadores. Tomar o crescimento empresarial como inevitável, e como resultado esperado da aplicação de um receituário técnico e econômico toma este fenômeno como algo racional e preciso, ao passo que os trabalhadores que contribuem para o crescimento são imprecisos e limitados, um movimento pendular que vai ao encontro dos argumentos de Aktouf (2000).

No que se refere à segunda contribuição, não nos parece que os entrevistados tenham pouca consciência sobre quem são e como se inserem no contexto produtivo. A desimportância enunciada em seus discursos se deve, antes de qualquer coisa, a um histórico desfavorável de embates, passando pelas escolhas estratégicas de tecnologia propositalmente poupadora de mão de obra, o que faz do desemprego uma ameaça constante; por estratégias de mobilização da subjetividade, voltadas não apenas à busca da adesão ao projeto empresarial, mas de convencimento de que importam apenas os saberes dos empresários e seus representantes; e pela assimetria na apropriação dos resultados, com frequente achatamento da remuneração, o que implica submissão como sinônimo de sobrevivência.

O resultado é a sustentação de uma representação social em que a empresa é tomada como grande e imprescindível e o trabalhador, pequeno e dispensável, mesmo sendo parte indissociável da organização, um descolamento simbólico que atende a uma visão empresarial unilateral e pretensamente autônoma, na esteira de movimentos que pretendem fazer do trabalhador um elemento prescindível da dinâmica organizacional. Neste cenário, não surpreende que o crescimento empresarial se apresente como uma ideia inescapável, para a qual todo e qualquer negócio se dirigiria se o “fator humano” não atrapalhar (DEJOURS, 2007). Tal perspectiva não apenas simplifica a complexidade do resultado nas organizações, quanto faz dos trabalhadores responsáveis pelo eventual fracasso no alcance dos objetivos empresariais. Possíveis agendas nesta linha de pesquisa podem: a) investigar públicos “oficiosos” nas organizações, que também constroem a história empresarial embora na versão oficial nela ocupem um espaço periférico; b) criticar a forma pela qual a história empresarial “oficial” é discursivamente construída; c) identificar lacunas e silenciamentos nas narrativas empresariais oficiais; d) analisar documentos empresariais oficiais e cotejá-los com o contexto histórico de sua produção, entre outros estudos que tomem a noção de crescimento econômico como temática relevante para que se humanizem as práticas organizacionais. Não obstante os contínuos apelos em torno da valorização dos empregados como parte essencial dos negócios, a pesquisa revela que eles identificam e reproduzem uma concepção que se apresenta como autônoma e bem-sucedida mesmo à revelia dos trabalhadores, tratados como meros “recursos” humanos, que, portanto podem alocados como qualquer outro bem da organização, um contrassenso oriundo da clivagem entre economia e sociedade e que produz, alimenta e mantém a desigualdade no contexto organizacional.

 

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Notas

[1] É preciso esclarecer que os quatro grandes blocos do roteiro semiestruturado de pesquisa estavam relacionados aos pontos orientadores da pesquisa original, que tratava de histórias empresariais. Este é o motivo para que as duas subseções de análise tratem de outros temas em razão de um recorte dos dados agregados originais.